sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A ORQUESTRA


A ORQUESTRA

Eu destinei esse blog a escrever sobre problemas sociais, subsidio é o que não tem faltado, o influxo histórico dando uma nova cara a corrupção, a brincadeira de se esconder no labirinto da lei, a dificuldade no acesso a justiça etc. Mesmo assim, sobrando conteúdo, as coisas andaram meio paradas por aqui. Na verdade, eu destinei esse blog a ser uma alternativa, nunca planejei, mesmo me propondo a falar dessas franjas do que é real, em informar ou denunciar nada. Aqui a sensação ainda é orientadora da palavra, mesmo todos os dias me adestrando a ser objetivo (ossos do ofício), nesse espaço, se respira qualquer coisa de poesia. Mas a correria sufocante me afastou desse propósito. Eu me conformei.

Sem enxergar as coisas com a mesma translucidez de antes, para retomar a escrita só mesmo encontrando algo além do real, algo mágico. Foi mais ou menos o que aconteceu.

Em uma noite de quinta, Juliana, minha mãe e eu fomos ver o ensaio da orquestra que acontecia na casa de minha vó, em que ela é violinista. Enquanto subíamos a escada de pedra da entrada já dava pra ouvir, vindo da sala de estar, Con Te Partiro sendo executada só pelos violinos. Batemos na porta, a música parou e vovó se levantou pra nos receber. Beijo, abraço e uma molecagem dirigida a cada um, como de costume, e ela voltou pra poltrona, pro violino e pra partitura. Na sala os músicos estavam distribuídos nos sofás e cadeiras improvisadas ao redor do centro. Cumprimentamos a todos, flautista, violoncelista, e os violinistas, e nos acomodamos ao redor pra ouvir o resto do ensaio. Uma noite de sereno, um frio delicioso no sertão. As portas laterais da sala que davam pra o terraço, com suas vidraças enormes pareciam trazer o jardim pra dentro de casa. A luz do poste prateava as folhas dos arvoredos úmidos de sereno. Um, dois, três – o maestro desenhou umas formas no ar com os dedos, a música completou o cenário...

Pegamos, talvez, a melhor parte do ensaio, quando já está quase tudo em sintonia. Enquanto a musica continuava uma paz invasiva crescia, trabalhos por concluir, pendências pessoais, nada... de repente todo o dia se resumia aquilo que estava vendo e ouvindo.

Os músicos se provocavam como velhos amigos. A sinestesia ia muito além do ritmo e do compasso. O maestro é um homem jovem, que ostenta um bigode e um bom humor dignos de registro, o flautista batia o pé no chão e mexia o tronco coreografando as notas que ele mesmo fazia enquanto soprava – ele o maestro e minha vó, eram os mais experientes – os outros violinistas, e o violoncelista eram todos meninos ainda, mas, no conjunto todo mundo tem a mesma idade! Todos eram moleques, e riam, trocavam apelidos, iam e voltavam corrigindo os deslizes completamente imperceptíveis para os meus ouvidos, lá os sentidos só captavam a prosa e poesia suspensa no ar daquela sala. Deus estava por ali, e bem feliz.

Tive uma vontade absurda de dizer, “ora, ensaiem num palco!”, a apresentação que me perdoe, mas o ensaio é muito mais saboroso.

Em dias em que não consigo ver graça em nada da vida, mesmo com uma agenda incrível no celular, ou uma rua cheia de gente pra conhecer, é pra orquestra que volto. Guardo como uma ilha na memória, que posso ir até lá quando quiser curtir o sereno e o frio. Ser arquiteto do meu próprio bom humor, pra transmitir também pra quem ta do meu lado. Isso é o que venho considerando o sentido da vida, pelo menos por hora...